quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Sobre um PoemaUm poema cresce inseguramente 
na confusão da carne, 
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, 
talvez como sangue 
ou sombra de sangue pelos canais do ser. 

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência 
ou os bagos de uva de onde nascem 
as raízes minúsculas do sol. 
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis 
do nosso amor, 
os rios, a grande paz exterior das coisas, 
as folhas dormindo o silêncio, 
as sementes à beira do vento, 
- a hora teatral da posse. 
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. 

E já nenhum poder destrói o poema. 
Insustentável, único, 
invade as órbitas, a face amorfa das paredes, 
a miséria dos minutos, 
a força sustida das coisas, 
a redonda e livre harmonia do mundo. 

- Em baixo o instrumento perplexo ignora 
a espinha do mistério. 
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne. 

Herberto Helder


AnsiedadeQuero compor um poema 
onde fremente 
cante a vida 
das florestas das águas e dos ventos. 

Que o meu canto seja 
no meio do temporal 
uma chicotada de vento 
que estremeça as estrelas 
desfaça mitos 
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis! 

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"


espaço interiorquando o poema 
são restos do naufrágio 
do espaço interior 
numa furtiva luz 
desesperada, 

resvalando até 
à superfície, 
lisa, firme, compacta, 
das coisas que todos 
os dias agarramos, 

quando 
o poema as envolve 
numa aura verbal 
e se incorpora nelas, 
ou são elas a impor-lhe 

a sua metafísica 
e o espaço exterior 
que povoam de 
temporalidades eriçadas, 
luzes cruas, sons ínfimos, poeiras. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"




Coisas, Pequenas CoisasFazer das coisas fracas um poema. 

Uma árvore está quieta, 
murcha, desprezada. 
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos 
e lhe sopra os dedos, 
ela volta a empertigar-se, renovada. 
E tu, que não sabias o segredo, 
perdes a vaidade. 
Fora de ti há o mundo 
e nele há tudo 
que em ti não cabe. 

Homem, até o barro tem poesia! 
Olha as coisas com humildade. 

Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"


Poema para Iludir a VidaTudo na vida está em esquecer o dia que passa. 
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste, 
um cedro, areias, raízes, 
ou asa de anjo 
caída num paul. 
O navio que passou além da barra 
já não lembra a barra. 
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar 
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos 
                                                                               [portos. 
Hoje corre-te um rio dos olhos 
e dos olhos arrancas limos e morcegos. 
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje 
                                                                                 [o fim 
e que há certezas, firmes e belas, 
que nem os olhos vesgos 
podem negar. 
Hoje é o dia de amanhã. 

Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"


Um PoemaUm poema 
é a reza dum rosário 
imaginário. 
Um esquema 
dorido. 
Um teorema 
que se contradiz. 
Uma súplica. 
Uma esmola. 

Dores, 
vividas umas, sonhadas outras... 
(Inútil destrinçar.) 

Um poema 
é a pedra duma escola 
com palavras a giz 
para a gente apagar ou guardar... 

Saúl Dias, in "Essência"


Quase um Poema de AmorHá muito tempo já que não escrevo um poema 
De amor. 
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! 
A nossa natureza 
Lusitana 
Tem essa humana 
Graça 
Feiticeira 
De tornar de cristal 
A mais sentimental 
E baça 
Bebedeira. 

Mas ou seja que vou envelhecendo 
E ninguém me deseje apaixonado, 
Ou que a antiga paixão 
Me mantenha calado 
O coração 
Num íntimo pudor, 
— Há muito tempo já que não escrevo um poema 
De amor. 

Miguel Torga, in 'Diário V'



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