sexta-feira, 13 de setembro de 2013

PROSA - VINÍCIUS DE MORAES


A casa materna

Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão têm uma velha ferrugem e o trinco se oculta num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste.
É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em prece, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar.
A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso.
Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna sabe por que, queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.
A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.


A arte de ser velho

É curioso como, com o avançar dos anos e o aproximar da morte, vão os homens fechando portas atrás de si, numa espécie de pudor de que o vejam enfrentar a velhice que se aproxima. Pelo menos entre nós, latinos da América, e sobretudo, do Brasil. E talvez seja melhor assim; pois se esse sentimento nos subtrai em vida, no sentido de seu aproveitamento no tempo, evita-nos incorrer em desfrutes de que não está isenta, por exemplo, a ancianidade entre alguns povos europeus e de alhures.
Não estou querendo dizer com isso que todos os nossos velhinhos sejam nenhuma flor que se cheire. Temo-los tão pilantras como não importa onde, e com a agravante de praticarem seus malfeitos com menos ingenuidade. Mas, como coletividade, não há dúvida que os velhinhos brasileiros têm mais compostura que a maioria da velhorra internacional (tirante, é claro, a China), embora entreguem mais depressa a rapadura.
Talvez nem seja compostura; talvez seja esse pudor de que falávamos acima, de se mostrarem em sua decadência, misturado ao muito freqüente sentimento de não terem aproveitado os verdes anos como deveriam. Seja como for, aqui no Brasil os velhos se retraem daqueles seus semelhantes que, como se poderia dizer, têm a faca e o queijo nas mãos. Em reuniões e lugares públicos não têm sido poucas as vezes em que já surpreendi olhares de velhos para moços que se poderiam traduzir mais ou menos assim: "Desgraçado! Aproveita enquanto é tempo porque não demora muito vais ficar assim como eu, um velho, e nenhuma dessas boas olhará mais sequer para o teu lado..."
Isso, aqui no Brasil, é fácil sentir nas boates, com exceção de São Paulo, onde alguns cocorocas ainda arriscam seu pezinho na pista, de cara cheia e sem ligar ao enfarte. No Rio é bem menos comum, e no geral, em mesa de velho não senta broto, pois, conforme reza a máxima popular, quem gosta de velho é reumatismo. O que me parece, de certo modo, cruel. Mas, o que se vai fazer? Assim é a mocidade- ínscia, cruel e gulosa em seus apetites. Como aliás, muito bem diz também a sabedoria do povo: homem velho e mulher nova, ou chifre ou cova.
Na Europa, felizmente para a classe, a cantiga soa diferente. Aliás, nos Estados Unidos dá-se, de certo modo, o mesmo. É verdade que no caso dos Estados Unidos a felicidade dos velhos é conseguida um pouco à base da vigarista; mas na Europa não. Na Europa vêem-se meninas lindas nas boates dançando cheek to cheek com verdadeiros macróbios, e de olhinho fechado e tudo. Enquanto que nos Estados Unidos eu creio que seja mais... cheek to cheek. Lembro-me que em Paris, no Club St. Florentin, onde eu ia bastante, havia na pista um velhinho sempre com meninas diferentes. O "matusa" enfrentava qualquer parada, do rock ao chá-chá-chá e dançava o fino, com todos os extravagantes passinhos com que os gauleses enfeitam as danças do Caribe, sem falar no nosso samba. Um dia, um rapazinho folgado veio convidar a menina do velhinho para dançar e sabem o que ela disse? - isso mesmo que vocês estão pensando e mais toda essa coisa. E enquanto isso, o velhinho de pé, o peito inchado, pronto para sair na física.
Eu achei a cena uma graça só, mas não sei se teria sentido o mesmo aqui no Brasil, se ela se tivesse passado no Sacha's com algum parente meu. Porque, no fundo, nós queremos os nossos velhinhos em casa, em sua cadeira de balanço, lendo Michel Zevaco ou pensando na morte próxima, como fazia meu avô. Velhinho saliente é muito bom, muito bom, mas de avô dos outros. Nosso, não.


Arte e síntese

Rio de Janeiro

      Arte não é só "fazer": é também esperar. Quando o veio seca, nada melhor para o artista que oferecer a face aos ventos, e viver, pois só da vida lhe poderão advir novos motivos para criar. Nada pode resultar mais esterilizante que o encontro de uma síntese, se ela não for, como na vida, a conseqüência de uma análise que se retoma a partir dela. Encontrar uma fórmula é, sem dúvida, uma forma de realização; mas comprazer-se nela e ficar a aplicá-la indefinidamente, porque agradou, ou compensou, constitui a meu ver uma falta de caráter artísco. Como nas ciências positivas, o encontro de uma síntese deve ser o ponto de partida para a busca de outra, e assim por diante, até o encontro dessa grande e única verdadeira síntese que é a morte. E nesse particular eu considero Picasso o maior artista dos nossos tempos.
      Picasso é como o câncer às avessas. Sua arte múltipla e prolífica representa uma tremenda afirmação de vida, pois o grande andaluz reformula-se constantemente, até quando varia sobre o mesmo tema. O quadro é para ele como um abismo onde se lança de cabeça, e que uma vez possuído, repele-o fora, como uma mulher violentada. Porque Picasso é dos poucos artistas de qualquer época a quem o abismo teme. O abismo teme esse louco saltimbanco que se atira no vácuo da tela sem saber se vai voltar - e volta sempre. De quantos mais, no nosso século, se pode dizer o mesmo?
      Arte é afirmação de vida, em que pese isto aos mórbidos. Afirmação de vida nesse sentido que a vida é a soma de todas as suas grandezas e podridões: um profundo silo onde se misturam alimentos e excrementos, e do qual o artista extrai a sua ração diária de energias, sonhos e perplexidades: a sua vitalidade inconsciente. Tome-se Villa-Lobos, por exemplo. Villa-Lobos é um caudal que se precipita arrastando tudo o que encontra em seu caminho, troncos floridos e paus pobres, ninféias e cadáveres; e, uma vez represado, harmoniza os elementos antagônicos dessa rica contextura em música, seja da maior tranqüilidade, seja do maior tormento - pois tudo faz parte da vida. Como admirar, assim, o artista que se recusa a comer dessa mistura, que desinfeta as mãos para tocá-la, que vive a tomar leite para não se envenenar com suas tintas?
      A arte não ama os covardes: e essa afirmação não pode ser mais antifascista. A arte, há que domá-la como a um miúra: e para tanto é preciso viver sem medo. Não a coragem idiota dos que se arriscam desnecessariamente, em franco desrespeito a esse terrível postulado da vida, que ordena uma preservação constante, de maneira a se estar sempre apto para os seus grandes momentos. Esse foi, a meu ver, o pecado maior de Hemingway, e a loucura maior de Rimbaud, que resultou, num, numa morte simulada, temporã, que se antecipou à grande síntese; no outro, numa evasão total, numa recusa pânica a ver o fundo do abismo. Isto sem prejuízo da arte, que ambos exerceram, cada um a seu modo, com gênio e responsabilidade; mas não o gênio e a responsabilidade de um Tolstoi ou de um Picasso. E aí é que está a questão.
      É evidente que nenhum prazer poderá jamais substituir uma relação sexual de amor. E é isso o que irrita em certos artistas: eles acabam por se satisfazer solitariamente. Não são capazes, depois de encontrar a síntese, de jogá-la aos peixes, como faz Picasso diariamente, e sair para outra - e não por insatisfação pura e simples: porque sabe intuitivamente que quem acha vive se perdendo, como filosofou Noel Rosa. O negócio é a busca. Aí que a vida incute.
      Eu conheço artistas que não se dão mais sequer o trabalho de mergulhar no que fazem, no ato de criar. Trabalham mecanicamente, a partir de um métier adquirido, e elaboram sua obra dentro de esquemas predeterminados por uma síntese atingida. E ficam jogando boxe com a sombra, justificando-se de sua impotência criadora com a auto-satisfação do próprio virtuosismo; aparentemente vaidoso de sua rigidez temática, mas no fundo sabendo que se encontram diante desse fatal impasse em que esbarram sempre os que se recusam às fontes mais generosas da vida e da criação.
      Há amigos de Picasso, e a um eu conheci, que o acusam de avarento. Mas certamente não com sua vida e sua arte. Já ouvi toda sorte de histórias a seu respeito: de que guarda a fortuna em casa, dentro de uma arca, e fica a contar e recontar moedas como um usurário de teatro. Histórias absurdas, evidentemente, para quem não deve ter a menor noção do valor do dinheiro; cujos guardanapos e toalhas, que ficava riscando à toa, eram disputados a tapa pelos garçons dos restaurantes onde comia em Cannes. Mas fosse isso verdade - esse horrível pecado que é a avareza - e não seria uma ínfima anomalia neurótica, desculpável, portanto, num homem que criou a maior obra de arte do seu século? Quem fez mais que ele, que revolucionou toda a estética da arte contemporânea e se colocou, chegando o momento, do único lado certo - aquele contra os inimigos do homem e da cultura? Hoje, beirando os noventa, o velho minotauro, ainda sadio, ainda pintando, pode dizer: "Criei um mundo!" E não, bem certo, porque tivesse sido avaro com sua vida. Fecundou mulheres, teve filhos, fez amigos e discípulos por toda parte. Prodigalizou seu sêmen. Foi um homem.


Conto do dilúvio

O rapaz vinha contente pelo aguaceiro - plact, ploct, ploct - na semi-embriaguez em que o tinham deixado umas cachaças tomadas para cortar: um mulatinho bacano e desempenado, naquela idade em que só se olha para a frente. Levantara as calças até os joelhos e agora deixava a chuva bater-lhe livremente no rosto, tomado de euforia. Nunca tinha visto tanta água. Ficara um tempão preso na obra, tudo alagado em torno, mas a cachaça correra de mão em mão - ele pouco habituado - e de repente, com a cabeça em fogo, resolvera enfrentar o temporal - poxa! - senão ia perder a vez da Ritinha.
Ritinha era uma jovem prostituta do morro, menina de 14 anos que se achamegara por ele. Ela o esperava sempre embaixo da escadaria que cortava a encosta, para evitar confusão com os malandros que a requestavam. "Deixa eles comigo …", dizia-lhe o rapaz cheio de entono, gingando o corpo como quem vai se espalhar. Mas ela sabia que seu namorado ainda não dava pé para enfrentar a turma da pesada, e por isso arrumara aquele cantinho discreto, onde podiam se amar à vontade.
Ele a viu mesmo de longe, abrigada sob a pedra da encosta, e correu para ela - ploct, ploct, ploct, ploct - o mais depressa que podia, a mente cheia de desejo do seu amor fácil e sem compromisso. Teve apenas o cuidado de rodear de longe o grande bueiro aberto na rua, para onde as águas lamacentas eram tragadas em rápida e perigosa sucção:
- Pensei que você não viesse mais... - queixou-se ela, abraçando-o todo contra o coração.
- Ah! roxinha... Não foi mole não! Se o papai aqui não é muito safo, você hoje ficava sem a sua marmita...
E veio o amor violento sob a chuva, um a querer sugar o outro, ela no seu abandono de prostituta-menina, ele no ardor de seus verdes anos, acrescido da embriaguez do álcool. E a tromba-d'água caía em torrente sobre seus jovens corpos se amando na lama, lavando-os das impurezas da vida no morro. E depois veio a paz.
-Vou te levar pro teu barraco - disse-lhe ele, agradecido.
- Que barraco? Não tem mais barraco nenhum não...
- Como é que não tem mais barraco?
Ela deu de ombros:
- A pedra rolou ontem de madrugada e acabou com tudo.
O rapaz ergueu o corpo a meio, para olhá-la melhor. Só então notou grandes manchas de sangue por baixo da lama que a cobria.
- Quer dizer que você não tem mais onde morar?
Ela levantou-se, apoiando-se nele:
- Tenho. Só agora é que eu tenho mesmo onde morar. Você chama morar àquele barraco imundo que eu tinha, onde eu vendia meu corpo por um dólar de maconha?
Depois, desprendendo-se dele, deu alguns passos em direção à rua cheia onde a água turbilhonava:
- Eu só voltei para não faltar ao nosso encontro...
E caminhando rapidamente para o sumidouro, gritou-lhe:
- Desde ontem eu moro aqui.
E tapando delicadamente as narinas com os dedos sujos de sangue e barro, deu um gracioso saltinho para dentro do bueiro e desapareceu.


Contemplações do poeta ao cair da noite

Ainda há pouco, a reler a página admirável de frei Luís de Sousa, cujo título, possivelmente dado pelos antologistas Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, é (se em vez de poeta ler-se arcebispo) o mesmo desta crônica, tive a alegria de verificar quão parecidas eram as minhas noites de solidão em Montevidéu, com as de frei Bertolameu dos Mártires, mais de três séculos antes. Como o santo arcebispo, também eu passava o dia todo dando expediente, quiçá de menos hierarquia, pois enquanto ele devia andar às voltas com despachos celestiais, tinha eu a meu cargo despachos marítimos e terrestres, além da firmação de passaportes e faturas e da contagem diária dos emolumentos consulares.
E como fazia ele, com relação às coisas divinas, eu, ao fechar-se a noite sobre o cerro que provocou no descobridor a exclamação nominativa da cidade, depois de um curto trajeto de automóvel até o bairro de Pocitos, onde tenho meu apartamento num sétimo andar "pagava-me o peso do dia, e do trabalho com um passatempo mal conhecido no mundo, e ao menos buscado de poucos (e ainda mal, que se muitos o buscaram fora melhor ao mundo)". Entregava-me a uma profunda contemplação da bem-amada ausente. Esta era a maneira de vencer a distância irremediável que se estendia diante dos meus olhos voltados para o norte e que às vezes buscavam, na linha descendente de Alfa e Beta de Centauro, o ponto exato onde ela, de sua janela sobre o parque, devia também pensar em mim.
E não se maravilhe ninguém de que eu, tal o arcebispo, passasse com tanta facilidade dos negócios à contemplação. Não tinha, é claro, "dês da primeira idade feito hábito neste santo exercício". Mas o que me faltava em penitências, sobrava-me em ternura e querer-bem. E se nele "este antigo costume lhe trazia a viola do espírito tão temperada sempre, que em qualquer conjunção que largava o negócio, logo a achava prestes para sem detença entoar as músicas da Celestial Jerusalém, e ficar absorto nos prazeres do divino ócio", eu por mim tinha sempre bem afinado o meu violão Del Vecchio, e me comprazia em machucar-me as saudades com os doridos acordes de tantas canções feitas para a bem-amada. E assim não me era por nada difícil passar de faturas a doçuras, e desligar-me da rotina do trabalho para a comunhão com a amiga distante, num lento evolar-se do meu ser empós sua adorável imagem, que às vezes parecia corporificar-se na lua que estava no céu. E não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu esvaindo-me de amor em seu luar. Pois era aquele o luar do meu bem no seu pungente exílio, a segredar-me que, mesmo ausente, ali estava para iluminar as minhas horas; e eu tivesse paciência e a esperasse dentro e fora de mim, que ela se vestira toda de luz para o nosso futuro encontro; e não me desesperasse, pois estava próximo o dia em que nunca mais nos haveríamos de separar.
De outros turnos - como no caso de frei Bertolameu, que dessem-lhe azo os negócios, "subia sobre tarde a um eirado que mandou fazer em uma casa das mais altas do Paço; e como o passarinho, que depois de andar todo o dia ocupado na fábrica de seu ninho, quando vai caindo o Sol, e as sombras crescendo, estende as asas pelo ar, dando umas voltas alegres, e desenfadadas, que parece não bole pena, ou posto sobre um raminho canta descansadamente", - também eu deixava-me estar no terraço de meu apartamento, um dos mais altos de Pocitos: e feito ele que, à imagem da avezinha, "depois de alargar os olhos pelas serras e outeiros, que do alto se descobriam, estendia os de sua alma às maiores alturas do Céu, voava com a consideração por aquelas eternas moradas, desabafava, e em voz baixa entoava de quando em quando alegres Hinos" - eu por minha vez, ante a idéia de compartilhar com a bem-amada a visão dos amplos espaços crepusculares do estuário do rio da Prata, e de rodeá-la, com meus braços dentro das iluminações do poente oriental, punha-me, tal um menino que, ai de mim, já não sou mais, a tamborilar com os dedos e a cantar com ela alegres sambas do meu Rio, que não é da Prata nem do Ouro, mas que é cidade de muito instante, e em hoje mora, em casa única, o meu antes triste e multifário coração.


Do amor aos bichos

Quem, dentre vós, já não teve vontade de ver um passarinho lhe vir pousar na mão? Quem já não sentiu a adorável sensação da repentina falta de temor de um bicho esquivo? A cutia que, num parque, faz uma pose rápida para o fotógrafo - em quem já não despertou o impulso de lhe afagar o dorso tímido? Quem já não invejou Francisco de Assis em suas pregações aos cordeirinhos da úmbria? Quem já não sorriu ao esquilo quando o animalzinho volta-se curioso para nos mirar? Quem já não se deliciou ao contato dulcíssimo de uma pomba malferida, a tremer medrosa em nossa palma?
Eis a razão por que, semanal leitor, hoje te quero falar do amor aos bichos. Não do amor de praxe aos cachorros, dos quais se diz serem os maiores amigos do homem; nem do elegante amor aos gatos, que gostam mais da casa que do dono, conforme reza o lurgar-comum. Quero falar-te de um certo inefável amor a animais mais terra-a-terra, como as galinhas e as vacas. Diremos provisoriamente basta o amor ao cavalo, que é, fora de dúvida, depois da mulher, o animal mais belo da Criação. Pois não quero, aqui neste elogio, deixar levar-me por considerações éticas ou estéticas, mas apenas por um critério de humanidade. E, sob este aspecto, o que não vos poderia eu dizer sobre as galinhas e as vacas! Excelsas galinhas, nobres vacas nas quais parece dormir o que há de mais telúrico na natureza... Bichos simples e sem imaginação, o que não vos contaria eu, no entanto, sobre a sua sapiência, a sua naturalidade existencial...
Confesso não morrer de amores pelos bichos chamados engraçadinhos, ou melhor, não os levar muito em conta: porque a verdade é que amo todos os bichos em geral; nem pelos demasiado relutantes ou maníaco-depressivos, tais os veados, os perus e as galinhas-d'angola. Mas olhai uma galinha qualquer ciscando num campo, ou em seu galinheiro: que feminilidade autêntica, que espírito prático e, sobretudo, que saúde moral! Eis ali um bicho que, na realidade, ama o seu clã; vive com um fundo sentimento de permanência, malgrado a espada de Dâmocles que lhe pesa permanentemente sobre a cabeça, ou por outra, o pescoço; e reluta pouco nas coisas do amor físico. Soubessem as mulheres imitá-las e estou certo viveriam bem mais felizes. E põem ovos! Já pensastes, apressado leitor, no que seja um ovo: e quando ovo se diz, só pode ser de galinha! É misterioso, útil e belo. Batido, cresce e se transforma em omelete, em bolo. Frito, é a imagem mesma do sol poente: e que gostoso! Pois são elas, leitor, são as galinhas que dão ovos e - há que convir - em enormes quantidades. E a normalidade com que praticam o amor?... A natureza poligâmica do macho, que é aparentemente uma lei da Criação, como é bem aceita por essa classe de fêmeas! Elas se entregam com a maior simplicidade, sem nunca se perder em lucubrações inúteis, dramas de consciência irrelevantes ou utilitarismos sórdidos, como acontece no mundo dos homens. E tampouco lhes falta lirismo ou beleza, pois muito poéticas põem-se, no entardecer, a cacarejar docemente em seus poleiros; e são belas, inexcedivelmente belas durante a maternidade.
Assim as vacas, mas de maneira outra. E não seria à toa que, a mais de tratar-se de um bicho contemplativo, é a vaca uma legítima força da natureza - e de compreensão mais sutil que a galinha, por isso que nela intervêm elementos espirituais autênticos, como a meditação filosófica e o comportamento plástico. De fato, o que é um campo sem vacas senão mera paisagem? Colocai nele uma vaca e logo tereis, dentro de concepções e cores diversas, um Portinari ou um Segall. A "humanização" é imediata: como que se cria uma ternura ambiente. Porque doces são as vacas em seu constante ruminar, em sua santa paciência e em seu jeito de olhar para trás, golpeando o ar com o rabo.
Bichos fadados, pela própria qualidade de sua matéria, à morte violenta, impressiona-me nelas a atitude em face da vida. São generosas, pois vivem de dar, e dão tudo o que têm, sem maiores queixas que as do trespasse, transformando -se num número impressionante de utilidades, como alimentos, adubos, botões, bolsas, palitos, sapatos, pentes e até tapetes - pelegos - como andou em moda. Por isso sou contra o uso de seu nome como insulto. Considero essa impropriedade um atentado à memória de todas as galinhas e vacas que morreram para servir ao homem. Só o leite e o ovo seriam motivo suficiente para se lhes erguer estátua em praça pública. Nunca ninguém fez mais pelo povo que uma simples vaca que lhe dá seu leite e sua carne, ou uma galinha que lhe dá seu ovo. E se o povo não pode tomar leite e comer carne e ovos diariamente, como deveria, culpe-se antes os governos, que não os sabem repartir como de direito. E abaixo os defraudadores e açambarcadores que deitam águas ao leite ou vendem o ovo mais caro do que custa ao bicho pô-lo!
E, uma vez dito isto, caiba-me uma consideração final contra os bichos prepotentes, sejam eles nobres como o leão ou a águia, ou furbos como o tigre ou o lobo: bichos que não permitem a vida à sua volta, que nasceram para matar e aterrorizar, para causar tristeza e dano; bichos que querem campear, sozinhos, senhores de tudo, donos da vida; bichos ferozes e egoístas contra o povo dos bichinhos humildes, que querem apenas um lugar ao sol e o direito de correr livremente em seus campos, matas e céus. Para vencê-los que se reúnam todos os outros bichos, inclusive os domésticos "mus" e "cocoricós", porque, cacarejando estes, conglomerando-se aqueles em massa pacífica mas respeitável, não prevalecerá contra eles a garra do tigre ou o dente do lobo. Constituirão uma frente comum intransponível, a dar democraticamente leite e ovos em benefício de todos, e destemerosa dos rugidos da fera. Porque uma fera é em geral covarde diante de uma vaca disposta a tudo.


Apelidos

O gênio do apelido é virtude brasileira, diria quase carioca. Não conheço, em outros povos, uma tal espontaneidade na caracterização de tipos através de apelidos. Aqui no Rio, então, se o sujeito não tiver sido muito bem-feitinho, a régua e compasso, dificilmente o seu defeito ou modo peculiar de ser passará despercebido ao olho do carioca. Aliás, também não adianta muita perfeição, haja vista o excesso de linha daquele indivíduo sempre ultra-engomado, que lhe valeu para sempre o apelido de Carretel.
Há entre nós homens e mulheres com apelidos absolutamente notáveis. Não vou, é claro, revelar a identidade de seus portadores, muitos dos quais não conheço, porque em geral apelidos desse gênero obedecem a uma crítica um tanto cruel, a uma caricatura em palavras de defeitos ou peculiaridades. Chamar gente de nariz chato de Nariz na Vidraça pode ser muito engraçado, mas não para o possuidor do dito, seus parentes e amigos mais íntimos. Aquele rapaz, por exemplo, que cresceu demais e ficou lá em cima, com um rosto garbo e infantil, é para todos os efeitos Menino Desce do Muro. Apelido cruel, convenhamos. Aliás, para caracterizar homens altos com um certo ar oligofrênico, há outros apelidos bastante bons: Espanador da Lua, Jóquei de Elefante, Água-Furtada. Sujeito alto, de pescoço comprido, já se sabe: é Garrafa. Há um homem magro, moreno e triste, conhecido meu, que tem o apelido de Pavio. Um outro, esquelético e muito louro, de Batata Palha. Este provavelmente não gostaria de ser identificado.
Minha amiga Danusa Leão não liga a mínima (até gosta!) que a chamem Girafinha, devido ao seu lindo pescocinho espichado. E está certo, o apelido é terno. Mas coisa diferente é ser apelidado Bagaço de Cana ou Unha Encravada, como aconteceu com dois homens públicos, notórios no Brasil pela sua feiúra. Ou 1001, pela falta de dois dentes na frente, ou Ovos Nevados, por causa de manchas brancas na pele. Ou Azeitona Triste, devido a uma fisionomia verdoenga, coroada por uma melancólica careca; ou Puxa a Válvula, violento apelido para um homem sujo e de mau hálito, de quem eu fujo como da peste.
Gente chata, essa tem apelidos que se vão tornando clássicos: Bolha, Pereba, Calo, Ferrinho de Dentista, Pingo D'água, Sapato Apertado, Valha-me Deus. Pode-se apontá-los na via pública; como também àquela vulcânica moça a quem apelidaram Estragalares e aquela grande fã de escritores e jornalistas, que ficou conhecida como Gruta da Imprensa; e mais aquela jovem leviana que, por muito pegada, tomou a pecha de Maçaneta; e ainda aquelas outras duas bem vulgares, vampes, que passaram a ser Minhoca de Lajedo e Que Modos São Esses.
Houve um tempo em que havia aqui no Rio três lindas Elzas, excelentes moças, grandes amigas de nosso grupo. A uma, por excesso de "bondade", o carioca Lúcio Rangel apelidou de Elza Pudim Carnal; e o cronista Rubem Braga, que é de Cachoeiro de Itapemirim, mas também um bom carioca, chamou às outras duas, Elza Quisera Eu e Elza Simpatia é Quase Amor. A caracterização, como se vê, nada fica a dever à biotipologia.
Chamar moça gostosa, de andar trançado, de Tico-Tico no Fubá não é nada mau. Como também me parece um achado o apelido de Festa na Cumeeira, dado aos rapazes de Copacabana, da geração coca-cola, pelo topete que usam na cabeleira. A propósito de penteados, há outros bons como Rabo de Peixe, para negrinhas de cabelos esticados a ferro, ou Rompe-Fronha, para quem tem cabelo cortado rente e espetado.
Gente pernóstica tem merecido, também, apelidos, mais que justos, como aquele crioulo de linguagem rebuscadíssima, a quem chamaram Noite Ilustrada; ou aquele branco do mesmo teor, que ficou conhecido Bolas de Ouro.
Ninguém escapa nesta desvairada metrópole. Capenga pode eventualmente ser chamado Pneu Furado ou Pé no Visgo. Gente de pele escalavrada, Cocada Preta; mentirosos, Palavra de Honra; pessoas com crânios e orelhas de abano, Feijoada Completa; homens corpulentos e balofos, Bolo Fofo; homossexuais muito altos, Jaca (porque é fruta grande). Sujeitos ricos e pequenininhos, Banana Ouro; carecas totais, Ponto de Referência. Elegantes desses que usam berloques de ouro e relógios-pulseira, alfinete ou pregador de gravata e anel no minguinho, Árvore de Natal. Tipos albinos, ou muito ruivos, Tijolo ou Pinga-Fogo.
Há um amigo meu a quem apelidaram Mal Necessário. Um bom sujeito. Há um outro, que um dia, nu, foi se olhar no espelho sobre uma penteadeira, que tinha uma gaveta aberta e perdeu o equilíbrio (contam seus amigos que o berro que deu foi tremendo!), a quem só chamam de Gaveta.
Como se vê, tudo é pretexto para um bom apelido.

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